Já era segunda-feira à tarde e o sol reluzia em
toda a cidade. O movimento estava fraco nas ruas e eu gostava de andar com meus
patins quatro rodas por todo o bairro. E isso já era rotineiro, mas essa tarde
foi diferente. Ainda ouço as sirenes, os gritos e o caos.
14h30min.
Estava prestes a sair de casa quando mamãe falou:
Respirei fundo e me voltei para mamãe com um
sorriso, pois ela já sabia a resposta, apenas olhei em seus olhos.
Ela disse:
– Mas de novo, Ana, essa história de patins, você
não se cansa disso?
Todas as tardes, desde que entrei para a escola,
meus patins eram minha companhia. Eu saía sem rumo pelas ruas do bairro, corria
o máximo que podia e adorava a sensação do vento em meu rosto. A sensação de
liberdade me domina toda vez que coloco meus patins quatro rodas.
– Mãe, eu sempre faço isso, e essa é a primeira vez
que você me questiona em tanto tempo.
Enquanto falava com mamãe, podia observar um ar de
preocupação no olhar dela, como se estivesse perdida em seus pensamentos, como
se estivesse tendo uma premonição de que algo fosse acontecer. Mamãe sempre
fora serena e despreocupada, porém agora mantinha um semblante de dor e medo.
Então ela sentou-se rapidamente em sua cadeira de
balanço e disse:
– Você está certa, Ana, já faz tanto tempo que você
faz isso, já devia estar acostumada.
Algo em seu olhar me dizia que alguma coisa estava
errada, mas não conseguia identificar o que era. Posso entender a preocupação
de mamãe, afinal esse último ano a cidade estava marcada pela violência e pela
desordem social.
Como o céu estava azul, e o dia estava tão quente
que o calor penetrava minha pele. Ah! Eu adorava o verão.
Meus patins estavam velhos e a tinta saía das
rodas, de tanto que andava pelas ruas descuidadas do bairro.
****
O dia parecia perfeito, e em paz. Durante o
percurso avistei Luciana, uma colega da escola; ela era esquisita, sempre
andava de cabeça baixa, olhando para seus pés, e sempre com aquela trança na
lateral de seu cabelo. Estudávamos juntas, mas nunca havíamos trocado uma
palavra, ela era quieta, assustadoramente quieta. Onde será que ela vai? Nunca
tinha avistado ela naquela rua. Estava sem seus cadernos, apenas com uma sacola
nas mãos, fiquei curiosa e resolvi segui-la e ver aonde ela ia, afinal, não
estava fazendo nada de errado.
Luciana saiu da rua e entrou em um lugar deserto,
como se fosse pra mata, era um lugar fétido e embarreado. Precisei tirar meus
patins. Agora estava descalço, não sei mais se devia seguir Luciana, aquele
lugar estava começando a me assustar. Vi que Luciana olhou para trás, então
precisei me esconder. Ela parecia assustada. No entanto, quando voltei a segui-la,
ouvi uma voz e quase urinei, um calafrio me percorreu dos pés à cabeça,
escondi-me atrás de uma árvore e vi Luciana se aproximar de um senhor, um homem
feio, velho, que olhava para ela de um jeito estranho. Quem será que era aquele
homem? Seria o pai de Luciana, seu avô? Não sei, mas aquilo era assustador,
afinal de contas não era todo dia que víamos Luciana conversando com as
pessoas. Enquanto observava, o homem se aproximou de Luciana, ele a pegou pelo
braço e a puxou para dentro da mata, naquele momento eu quis gritar, mas não
podia, não conseguia, paralisei e só me dei conta depois que ouvi um grito de
Luciana. Apressei-me e fui ao seu encalço, e logo me deparei com uma cena que
me arrepiou dos pés à cabeça.
O sol estava indo embora e começava a ventar; eu
olhei aquele homem, e ele estava encima da Luciana, minha reação me assustou
mais do que a ação propriamente dita.
Eu gritei:
– Solta! Solta ela! – Assim que gritei, ele
levantou-se e me olhou nos olhos, deu um sorriso amarelo e veio em minha
direção.
– Pare! Pare onde está! Eu segui a Luciana até aqui
e já chamei a polícia.
Mas algo estava errado, pois Luciana estava no chão
olhando para baixo como se não quisesse ver a situação, eu dava passos para
trás e o homem cada vez chegava mais perto, não sabia o que fazer, já estava
ficando encurralada; foi quando vi que Luciana levantou, então eu gritei:
– Foge, Luciana, foge!
Estava eu vendo coisas, não, não podia ser verdade,
enquanto eu ofegava devido ao medo, esperava pela fuga de Luciana, no entanto
ela ergueu os olhos. Ah! Aqueles olhos pareciam tochas de fogo, e os seus lábios
se curvaram em um sorriso largo. Mas o que estava acontecendo? Por que Luciana
estava sorrindo?
****
Eu já tive medo de muita coisa, de muita coisa mesmo, mas o olhar de Luciana me apavorou de um jeito diferente, era como se o seus olhos destilassem sangue, era como se não fosse humano. Agora era o meu fim, eu senti as mãos daquele homem sobre mim e me debatia a cada toque, eu queria chorar, mas não podia, precisava sair daquele lugar. Sim, eu precisava.
– Pobre, Anabele, o que você está fazendo aqui? Mas
acho que a pergunta que você deve estar fazendo é o que eu, a pobre Luciana,
estou fazendo aqui? Vamos, Ana, me responda o que você acha.
– Luciana, eu... Eu achei que você estava correndo
perigo e pensei em te ajudar, mas eu não... Não sabia.
Aquilo era estranho, da onde veio aquela Luciana,
quem ela era e o que estava acontecendo?Enquanto matutava em meus pensamentos,
tremi ao ver na mão daquele homem uma arma, sim uma arma, ele me agarrou pelos
cabelos e se aproximou do meu rosto, eu podia sentir o seu hálito podre.
Preciso fazer algo, preciso sair dessa, só tenho uma chance e não posso
desperdiçar.
– Não me toque! – gritava desesperada.
Enquanto ele me agarrava, eu lutava, porém ele era
mais forte do que eu, mas tinha algo, sim meus patins, eles estavam envoltos em
minha cintura e, embora estivessem velhos, ambos tinham certo peso. Puxei-os e
acertei o homem direto na cabeça, ele caiu e começou a gritar, então o acertei
de novo, e ele se levantou e apontou sua arma para mim, comecei a lutar com
ele, e foi aí que tudo aconteceu.
Um som se ouviu na mata, um disparo para ser
precisa, e esse acertou quem estava de fora da luta. Eu vi Luciana cair no
chão, e tanto eu quanto aquele homem a observávamos desfalecer em uma queda
brusca. Quando me dei conta a arma estava em minhas mãos e eu só tinha uma
saída, era eu ou era ele. E assim aquele homem me olhou nos olhos e novamente
deu um sorriso amarelo, um sorriso enigmático. Eu o olhei e também sorri.
Fez-se silêncio, e outro disparo pode-se ouvir.
Eu havia matado aquele homem, mas o que me
preocupava era o seu sorriso, me aproximei dele e avistei Luciana um pouco mais
adiante, estirada no chão, porém um som quase inaudível veio de seus lábios,
ela dizia:
– Pai, papai! Não morre, papai.
O que ela estava dizendo? Não era possível, pai e
filha... Não podia ser, precisava pensar o que iria fazer. Luciana precisava de
um médico, estava ferida e seu pai morto, o que eu poderia fazer?
Já estava escuro e eu sempre gostei da noite, para
alguns ela é perturbadora, mas para mim ela é libertadora.
****
Pobre Luciana, morta pelo próprio pai. E que sorte
desse homem, não conseguiu lidar com a dor e então tirou a própria vida. E que
peça a vida me pregou, imagine só, presenciar tudo isso sem poder fazer nada.
Agora o que me resta é o silêncio, a dor e a tristeza.
Aqui estou eu mais uma vez andando com os meus
velhos patins. O dia hoje está tão claro, como naquele dia em que encontrei
Luciana, porém o ar está mais limpo, e a brisa está mais forte. Pobre Luciana,
não imaginava quão querida era. Triste encontro teve com a morte.
Ainda ouço as sirenes da ambulância e o desespero
dos paramédicos, a tragédia do pai que matou a filha e depois deu fim à própria
vida. Mas o que dizer da violência que está crescente no bairro?
Mamãe sempre se preocupa comigo, mas eu sempre
espero o cair da noite, para poder me libertar, pois nada mais me aprisiona. É
sempre mais um dia depois da aula, pois desde que ganhei os meus patins, sinto
a liberdade fluir pelos meus poros, e percorrer todo o meu organismo. Não tenho
mais medo, pois agora estou livre.
FIM
Novamente, meus parabéns. É a terceira vez que leio o seu conto, e continuo apaixondo por essa história, que torço que vire livro.
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